domingo, 6 de abril de 2008

Página 470

"Penso nos gestos esqucidos, nos muitos ademanes e palavras dos avós, pouco a pouco perdidos, não herdados, caídos um atrás do outro da árvore do tempo.
Esta noite encontrei uma vela sobre a mesa e, para brincar, acedni-a e andei com ela pelo corredor. O movimento do ar ia apagá-la, e então vi a minha mão esquerda levantar-se sozinha, abrigando e protegendo a chama como uma cortina viva que afastasse o ar. Enquanto o fogo se endireitava outra vez alerta, pensei que esse gesto fora o gesto de todos nós durante milhares de anos, durante a Iade do Fogo, até que a trocaram pela luz elétrica. Imaginei outros gestos, o gesto das mulheres levantando a ponta da saia, o gesto dos homens procurando o punho da espada. Como as palavras perdidas da infância, ouvidas pela última vez na boca dos velhos que iam morrendo. Em minha casa já ninguém diz "a cômoda de cânfora", já ninguém fala das trempes. Como as músicas do momento, as valsas dos anos 20, as polcas que enterneciam nossos avós.
Penso nesses objetos, nessas caixas, nesses utensílios que aparecem às vezes em galpões, em cozinhas ou esconderijos, e cujo uso já ninguém é capaz de explicar. Vaidade de crer que compreendemos as obras do tempo: o tempo enterra seus mortos e guarda as chaves. Somente nos sonhos, na poesia, no jogo - acender uma vela, andar com ela pelo corredor -, aproximamo-nos às vezes do que fomos antes de ser isto que ninguém sabe se somos."
do Jogo da Amarelinha

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Em 3ª pessoa.

Gosto de pensar em mim mesma em terceira pessoa. (Posso me ver deitada na cama, com os pés e as mãos gelados, tentando decidir se me cubro e continuo a ler o livro ou se levanto para escrever)
Então eu posso imaginar o que eu quiser e tudo ao meu redor é construído a partir da forma como me vejo. E é como se minha alma pudesse ser dividida em duas: a de narradora e a de personagem. A de narradora onisciente, racional e sensata, e a de personagem extremamente emotiva, com talvez algum brilho de beleza dramática, mas podendo ser moldada à vontade pela sábia mão que escreve. Assim, como se eu tivesse total controle sobre mim mesma.
É intrigante como toda narrativa tem uma lógica interna, por mais confusa que possa parecer. Como podem ser tribuídos às personagens as virtudes e os defeitos que forem convenientes ao desenrolar da história e como, por mais verossímel que seja a personagem, essas qualidades são absolutamente coerentes com o lógica da narrativa. Pelo menos é assim em assim uma boa narrativa - uma em que tudo funciona para dizer algo, cumprir um propósito. Porque toda narrativa tem um propósito, um sentido de existir, ao menos uma intenção por tras do ato inicial do autor.
Enquanto aquilo que somos e os acontecimentos de nossa vida não parecem ser regidos por lógica alguma. Tudo o que nos ocorre parece estar jogado no caos, meros pontos desconexos, perdidos e fadados à confusão. São tantas as coisas que não se encaixam - ao menos do nosso ponto de vista... Talvez exista alguma rede invisível ou escondida ordenando o caos e, mesmo que não percebamos, cada coisa esteja em seu lugar. Ou talvez a ordem seja uma exigência muito fútil de nossa mente humana e limitada.
Só sei que gosto de me imaginar em terceira pessoa. Sentada em frente a escrivaninha com as pernas cruzadas sobre a cadeira, se dando conta de que está numa posição absolutamente desconfortável e, para poder descrevê-la, tentando imaginar como é sua cara enquanto deliza rapidamente a caneta sobre o papel. E essa brincadeira mais do que uma fuga ou ilusão, mas como uma forma de encontrar alguma lógica. Uma tentativa, talvez ingênua, de compreender melhor suas ações e encaixá-las em algum propósito.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

um discurso de um velho

Sabemos que nada é definitivo (relembro-me disso às vezes, um consolo tanto quanto um castigo), mas nem por isso os processos são reversíveis. Caminhamos através do tempo com os ecos de nossos atos se acumulando uns sobre os outros de maneira tão insuportável que a cada dia que passa eu desejo mais a pureza das coisas iniciais. As causas e os efeitos se sobrepõe e moldam uns aos outros à vista do olhar, encobrem-se em processos confusos e incompletos enquanto nós somos apenas expectadores dessa cruel vingança de nossos filhos.

Das mais minúsculas ações ou não-ações, dos gestos, das falas, das situações, do sentimento, da lágrima que não cai, da ingenuidade e do romantismo, dos erros. Mesmo para o mais exímio observador, nada em nossos atos e em nós mesmos pode indicar tudo o que já passamos e a forma como vivemos. Somos vítimas da inconstância geral do mundo, e todo resquício que fica causa dor.

Me parece que todos acabam por esquecer o passado ignorando o fato de que ele está impregnado em suas roupas, em seu cheiro, em cada célula nervosa, impregnado até naquilo que não está presente. Talvez conseguíssemos lidar melhor com ele se não fizéssemos tanta questão em ignorar sua presença constante. Talvez conseguíssemos nos libertar.